quarta-feira, 19 de março de 2014

#01 - A Garota da Neve


Daralí. O Mundo das Trevas, existente entre o Mundo Humano e o Mundo dos Mortos. Um lugar de criaturas bestiais e seres humanoides de assombrosos poderes, conhecidos como demônios. Um mundo onde só sobrevive aqueles que nasceram para matar. No extremo norte existe um gigantesco castelo negro, sede do Reioni, um clã de assassinos altamente treinados nas mais diversas artes de matar, movidos pela sua própria definição de justiça.
No vale rochoso a leste do castelo os gritos de socorro de uma jovem faziam eco pelas paredes de pedra.
- Faça ela calar essa maldita boca! - Dizia a voz gutural de um dos três trolls que desciam a trilha do vale.
- Ela não para de se mexer. - Reclamava o mais alto dos três que em seus ombros carregava o que parecia um corpo encoberto por tecido que se movia demais.
A voz vinda do corpo amarrado era fina e chorosa, não deixando dúvidas de que era uma garota jovem. O mais velho deles jogou o embrulho contra a parede de pedra com violência e o corpo silenciou. Esperava ele que houvesse matado a moça.
Os três trolls tiveram que parar sua caminhada quando uma rocha grande demais caiu das paredes, bloqueando o caminho. Algo certamente nada natural.
- Ah, essa gritaria está me incomodando. - Veio uma voz masculina da parte mais alta do vale. - E aqui está fedendo também.
- Aidan, parece que você bloqueou a trilha com a pedra que rolou. Nos desculpe, caros... - Deu uma pausa outra voz masculina vinda do mesmo lugar. - Trolls? Retiro minhas desculpas. Na verdade lamento que a rocha não tenha acertado vocês. - Ria.
- Ora, seu... - O irmão do meio dos três trolls, que vestia uma pesada armadura de ferro e carregava nas mãos uma espada larga, foi rápido em saltar pegando impulso na rocha caída. - Quem vocês pensam que são?
A lâmina de sua espada girou no mesmo local onde os dois vultos pareciam estar, mas ali não havia nada para cortar, pois os dois já haviam saltado para baixo, frente a frente com os dois trolls deixados para trás.
- Devagar demais. - Riam os dois.
A expressão dos trolls era uma mistura de raiva e inquietação, mas quando os dois homens saíram da sombra das árvores e as nuvens deram espaço para o brilho da lua cheia, suas expressões foram se transformando. Primeiro em reconhecimento, então em surpresa, e por último em medo.
- Essa marca... - O mais novo dos trolls apontava para o símbolo da ave na manga direita da jaqueta de Aidan. - Vocês dois são os...
Suas palavras foram interrompidas pelo corpo do troll de armadura que despencou inerte para o fundo do vale, deixando apenas um rastro de sangue escuro por onde seu corpo batia e fragmentos do que parecia ser... Gelo. Os dois trolls restantes olharam para cima, onde seu irmão deveria estar, e de lá saltou mais um homem que se juntou aos dois primeiros. Este último vestia um sobretudo negro com o mesmo símbolo da ave nas costas.
- O Lobo Branco! - O mais velho dos trolls recuou um passo para trás. - Reioni...
O homem de sobretudo atirou ao chão os pedaços da espada do troll morto. A lâmina estava congelada. Ele então deu as costas aos trolls como se sua presença fosse insignificante e sua voz pesada e autoritária saiu na direção dos dois mais jovens.
- Se saírem da patrulha novamente vou considerá-los desertores e terei imenso prazer em dilacerar cada mísera parte de seus corpos. - A voz parecia cortar como o gelo e os olhos azuis eram sombrios.
- Ah! Aidan se afastou! Eu apenas vim atrás dele para levá-lo de volta. - Justificava o que parecia ser mais novo entre os três.
- Cale a boca, Lorien! - Aidan o acotovelava. - Olha, eu estava fazendo a patrulha quando ouvi gritos e reclamações e isso estava me incomodando, então resolvi ver o que era e aqui estou.
O sorriso em seu rosto brincalhão desapareceu quando o punho do homem do sobretudo acertou seu rosto de surpresa.
- Considere uma advertência.
- Sim, senhor. - Aidan cuspiu uma mínima quantidade de sangue enquanto respondia contrariado as palavras do superior.
- Vamos embora. - Disse o homem enfiando as mãos nos bolsos e começando a subir a trilha.
- Espere aí! Você matou nosso irmão, então morrerá também! Não me importa quem você seja, eu vou vingar meu irmão.
O mais novo dos trolls ameaçou correr para a espada quebrada no chão, mas em questão de segundos uma linha de afiadas estacas de gelo pareceu sair dos pés do homem de sobretudo e correr pelo chão até a última e afiada ponta ameaçar perfurar a garganta do troll se ele desse mais um passo que fosse.
- Vamos. Agora. - Disse em voz baixa.
- Ahn, Rikker. - Lorien hesitou. - Eles estão levando uma mulher contra a vontade.
- Não é problema nosso. - Tão frio quanto o gelo que criou.
- Seu amigo tem razão, fedelhos. Façam como ele e corram covardemente para longe. - Ria o mais novo dos trolls.
Lorien arregalou os olhos e seu queixo caiu, virando o olhar dos trolls para seu general. Aidan que havia decidido se sentar sobre a rocha caída espelhava quase a mesma expressão do parceiro, se limitando a dizer:
- Vocês tinham uma chance de sobreviver, mas agora já era.
- Do que está falando, fedelho?
- Correr covardemente? - A voz de Rikker vinha até divertida, mas o tom foi caindo aos poucos. - Eu não tenho razão para temer dois trolls tão grandes quanto burros. Se quero sair logo daqui é porque esses seus corpos verdes nojentos e fedorentos estão me dando vontade de vomitar.
- Eu vou esmagar essa sua cabeça numa pedra e fazer um ensopado com o que sobrar, junto com esses dois fedelhos e essa estúpida garota.
- Irmão, está ficando frio. - Choramingou o troll que carregava o corpo inerte.
De fato o troll não havia percebido, mas a cada palavra dita a nuvem produzida por seu hálito era mais intensa e o chão já se recobria de minúsculos cristais de gelo e o vento parecia aumentar.
- Eles tiraram o Rikker do sério. - Aidan cruzava os braços, respirando fundo.
- Achei que era um dom apenas seu. - Lorien ria como se toda a situação fosse absolutamente normal.
O mais novo dos trolls olhou para Rikker que estava imóvel, olhando de volta. Seus olhos azuis estavam estreitos e seus lábios eram uma linha inexpressiva. O troll piscou e Rikker havia desaparecido.
O Lobo Branco se movia em uma velocidade impressionante. Aidan e Lorien o seguiam o olhar, mas era demais para os trolls. Em questão de segundos Rikker desembainhou a longa lâmina fina que deslizou fácil em um profundo corte horizontal na barriga do mais novo dos trolls. Sangue e alguns pedaços de seus órgãos se espalharam pela ferida aberta e o troll caiu de joelhos facilitando o trabalho de Rikker em apoiar ambos os pés nos ombros da criatura verde e ver sua espada desaparecer no topo da cabeça do troll rumo ao resto do corpo.
Rikker deu impulso para trás usando os ombros do troll como apoio e segurando a espada com firmeza fazendo-a deslizar para fora do corpo verde respingando sangue escuro nos dois jovens que observavam seu superior.
O troll restante tentou correr, mas seus pés estavam presos em grossas camadas de gelo que ele não notou estarem se formando sobre seus pés já lhe chegando a altura dos joelhos.
A lâmina cortou o ar frio com um som estridente até encontrar o ligamento do ombro direto do troll e de baixo para cima decepar seu braço do corpo, fazendo rolar no chão o embrulho de tecido que trazia a jovem sequestrada.
A criatura urrou de dor e se pôs a esmurrar o ar em todas as direções com sua mão restante numa tentativa vã de acertar o Lobo Branco da Reioni, mas Rikker já havia parado bem a sua frente, fora do alcance de seu braço, observando em silêncio o desespero do último dos trolls enquanto o sangue escuro escorria por sua espada até pingar no chão cristalizado.
Rikker levantou a mão direita em garra e seus dedos foram se fechando na direção do troll que parecia urrar cada vez mais alto a cada milímetro que os dedos de Rikker se moviam.
Enfim as lanças de gelo que vinham perfurando seu corpo desde o chão romperam seu tronco e cabeça espalhando sangue ao redor quando os dedos de Rikker finalmente se fecharam em punho.
- Você o perfurou de dentro pra fora com estacas de gelo? - Lorien observava os restos semi-congelados do troll como se fossem uma bela obra de arte. - Legal.
Rikker não respondeu. Apenas agitou sua espada retirando o máximo possível de sangue e voltando-a para a bainha sob o sobretudo.
Ao mesmo tempo do comentário de Lorien, Aidan havia se aproximado do corpo encoberto, chutando o braço decepado do troll para fora de seu caminho. Com uma faca pequena cortou as amarradas e desenrolou o tecido.
Ali estava o corpo de uma garota que ainda respirava. Estava ferida, suas roupas eram trapos e estava suja, mas viva. Porém o que causou a expressão de surpresa em Aidan foi outra característica da jovem. Os longos cabelos brancos em uma pessoa jovem...
- Rikker. - Chamou em voz baixa. - É uma garota da neve.
A garota então se mexeu com dificuldade e abriu singelamente os profundos olhos azuis. Viu apenas três homens a observando de volta. Um deles parecia mais novo que ela própria, com cabelos loiros bem alinhados e uma expressão delicada. O outro, mais próximo dela, tinha cabelos negros desarrumados e olhos escuros. Exausta, seus olhos pesaram e o corpo doeu, então desmaiou, sendo que a última coisa que conseguiu ver foi o homem mais afastado, era alto, forte, de profundos olhos azuis e cabelo branco. Um nevado.

Horas mais tarde a garota abriu os olhos. Estava deitada em uma cama macia em um local silencioso. Tentou se levantar mas o corpo ainda doía e estava fraca. Há dias não comia nada. Fez um esforço em ao menos se sentar e olhar em volta.
Estava na verdade em um grande salão repleto de camas iguais. Parecia ser uma enfermaria ou algo do gênero. As paredes eram de pedra marrom mas uma grande quantidade de tochas deixava o local iluminado e aquecido. Em uma cama mais afastada havia alguém deitado repleto de aparelhos estranhos conectados ao corpo, talvez em um estado grave, e do outro lado uma cortina branca encobria por completo outra das camas. Na cama imediatamente ao lado alguém dormia desajeitado. Um jovem.
Ele parecia ter adormecido sentado e seu corpo caído para o lado. Vestia roupas simples e pesadas. Uma calça preta repleta de bolsos, uma camiseta branca lisa por baixo de uma pesada jaqueta preta e ainda estava calçando um par de botas ao estilo militar por cima da barra da calça. Ao notar o cabelo negro e desarrumado foi que se lembrou vagamente dos três rostos que viu antes de desmaiar, em especial o homem de cabelos brancos.
Olhou então para si mesma. Várias partes de seu corpo estavam cobertas por curativos ou enroladas em ataduras. Seu cabelo estava molhado e suas roupas haviam sido trocadas por um simples vestido azul claro sem qualquer enfeite.
- Deveria dormir um pouco mais. - A voz, apesar de baixa e calma, assustou a garota que olhou rápida para os lados.
Do que parecia ser a porta vinha um homem idoso, baixo e roliço que sustentava um sorriso tranquilizador no rosto. As roupas eram todas pretas a não ser pelo avental branco que deixava claro seu posto médico naquele local.
- Me sinto bem. - Sussurrou em resposta.
O idoso alargou o sorriso e concordou com a cabeça.
- Deve estar com fome então.
Uma mulher vinha pelo mesmo caminho carregando uma bandeja com comida. Ela era alta, magra e elegante, com longos cabelos loiros presos no alto do cabeça e que mesmo assim chicoteavam a parte de trás de suas coxas. Vestia-se com um sapato preto de salto alto muito elegante e um curto vestido rodado igualmente preto. Por cima vestia também um avental branco, talvez fosse uma enfermeira, mas a garota se pegava pensando se as cores branco e preto eram algum tipo de padrão naquele lugar.
- Não estou certa do que gosta de comer, mas acredito que esteja bom o suficiente.
A loira colocou em sua frente a bandeja com um prato de sopa quente, pão e frutas, além de uma taça de vinho e outra de água. A esta altura a garota comeria qualquer coisa, de forma que aquilo era para ela um banquete. Sem cerimônia avançou na comida, causando o riso discreto da loira e do idoso.
- Meu nome é Tália, e este é o Doutor Gen. Somos os responsáveis pela enfermaria.
- Foi você quem me lavou e trocou minhas roupas? - A garota ruborizou ao fazer a pergunta.
Tália riu.
- Sim, fui eu.
- Nossa visitante está acordada. - Outra pessoa se fazia presente. Um garoto jovem, magro, de cabelos tão loiros quanto os de Tália. Como os outros ali suas roupas eram simples e seguiam o padrão branco e preto, em geral mais preto que branco. - Como se sente?
- Bem. - Novamente sua memória piscou. - Você estava lá quando desmaiei.
- Sim. Meu nome é Lorien, Tália é minha irmã mais velha. - Lorien apontou para o outro adormecido na cama ao lado. - Este é Aidan. Trouxemos você com a gente depois que desmaiou. Precisava de cuidados médicos além de nossas capacidades.
- Havia... - A garota hesitou e sua voz se tornou um sussurro. - Uma terceira pessoa...
- Hum? Ah! Rikker. Ele é nosso general. Foi ele quem estripou os trolls que sequestraram você e então pudemos te ajudar. - Lorien ria. Parecia admirar muito Rikker.
Rikker. O nevado.
- Este é o nome dele? Rikker? - Perguntou com uma pontada de tristeza.
- Sim, é.
- Você o conhece? - Perguntou o Doutor Gen.
- Eu esperava que sim... Mas talvez eu esteja enganada.
Lorien pegou uma maça da bandeja de comida mesmo sob o olhar psicótico de sua irmã e mordeu um pedaço, falando enquanto mastigava.
- Rikker é um nevado também, mas ele não tem contato com seu povo. - Engoliu a maça e continuou. - O general só tem contato conosco.
Sem absolutamente nenhuma razão Lorien pegou a metade restante da maçã e atirou no rosto do adormecido Aidan que acordou em um salto assumindo uma postura ofensiva e olhando ao redor.
- Hey, sua Dama-Em-Perigo já acordou e você aí dormindo. Não seja incompetente.
- Eu juro que vou te matar. - Apesar do sorriso em sua face as palavras de Aidan foram sinceramente ameaçadoras.
- Não se preocupe. - Tália piscou para a garota. - Estes dois foram criados juntos desde pequenos e são como gêmeos siameses.
- Aidan não saiu dessa enfermaria um único minuto desde que você chegou. - Lorien disse e no segundo seguinte uma laranja voadora deixava um perfeito círculo avermelhado no meio de sua testa.
- Vou arrancar sua língua se não calar a boca, Lorien! - O moreno pigarreou e ajeitou as roupas amassadas pelo sono. - Muito prazer, meu nome é Aidan e estou ao seu dispor.
No mesmo instante Lorien explodia em gargalhadas, e Tália e o doutor Gen se esforçavam em não rir, deixando Aidan ruborizado e sem graça.
- Nosso garoto-problema sendo educado. Já posso aceitar a minha morte. - Doutor Gen ria agora com vontade.
- Obrigada. - A garota cortou com um sorriso. - Por me ajudarem. Mas, há quanto tempo estou aqui?
- Três dias. - Aidan sentava desleixado na cama onde estivera adormecido se servindo de várias uvas ao mesmo tempo.
Ao ouvir por quanto tempo esteve inconsciente, a garota se agitou e tentou se levantar chutando os lençóis, sendo impedida por Lorien e Aidan e com as insistentes palavras do médico e enfermeira de que não deveria se levantar.
- Sou muito grata a vocês todos, lhes devo minha vida, mas preciso partir. - Disse mais alto do que pretendia.
- Para onde precisa ir com tanta urgência? - Lorien a empurrava de volta a cama com dificuldade pela insistência da garota em se levantar. - Podemos levá-la se esperar se curar. Não faça loucuras.
- Eu preciso chegar até o Clã! - Sua voz vinha mais alta, tentando subjugar todas as outras na sala. - Preciso pedir a ajuda deles! É muito importante! Deixem-me ir! Preciso encontrar o Reioni!
- Você está no Reioni. - A voz firme veio da porta e junto com ela todos os outros calaram a boca imediatamente.
Aidan que estava sentado desleixado se levantou em posição ereta perfeita. Tália e o Doutor Gen que já estavam em pé baixaram as cabeças em respeito. Lorien soltou a garota e também assumiu uma postura formal.
Caminhando com determinação vinha uma mulher de estatura mediana com longos e lisos cabelos de um vermelho forte. Seus olhos eram duros e determinados. Trajava um vestido preto curto e esvoaçante de mangas longas e no chão de pedra fazia o eco do salto das longas botas negras. Sua aparência era inconfundível e preenchia lendas e fábulas sobre sua história, encantando e causando medo nos mais valentes homens. A Imperatriz de Fogo, a Dama Negra, a Líder Reioni...
- Ayla Volkan. - Um sussurro da voz da garota.
- Você está no Castelo Reioni, e o que eu quero saber é quem é você? - Ayla impunha respeito até com poucas palavras.
Livre das mãos dos outros, a garota se levantou da cama o mais rápido que pode e se ajoelhou junto aos pés de Ayla lhe segurando firme pela mão. Sua voz veio alta, desesperada e chorosa:
- Vim até aqui implorar por sua ajuda, Ayla Volkan. - Lágrimas se formavam em seus olhos, mas bravamente as continha. - Meu nome é Marion Neherenia, e eu sou...
Seus olhares se viraram para a porta ao som de vidro quebrado pois as palavras de Marion foram interrompidas quando Rikker deixou cair um vaso de cristal que espalhou água e lírios brancos pelo chão. No rosto do homem alto de cabelos brancos se instalava a mais profunda e absoluta surpresa. Uma expressão que se espalharia para todos naquela sala quando o próprio Rikker completasse a frase de Marion:
- A Princesa do País de Gelo.


~ Continua ~